12.13.2013

A Lisboa que faz falta.


Querias e devias escrever sobre o Rio de Janeiro, mas Lisboa bate o pé assim que o avião faz a curva sobre o Tejo e aponta o nariz para a cidade

Querias escrever sobre uma cidade, mas é outra que agora te comanda: uma fresta de rio ao fundo da rua, o espreguiçar da roupa nos estendais, os teus sobrinhos a fazerem macacadas na casa onde cresceste.

Querias e devias escrever sobre o Rio de Janeiro, mas Lisboa bate o pé assim que o avião faz a curva sobre o Tejo e aponta o nariz para a cidade, deixando que as antenas nos telhados vermelhos lhe façam cócegas na barriga.


Pretendias explicar o conceito de "terrinha" no Rio de Janeiro, essa imagem de um Portugal antigo que perdura carinhosamente na imaginação carioca. Tiraste notas num caderno, ias ser espirituoso e informativo, explicando como os teus amigos cariocas forçaram um sotaque português e te disseram "Vais à terrinha?" após saberem que tinhas um bilhete para pular o Atlântico.

Mas o avião toca a pista, o táxi desvenda Lisboa nas janelas, e o que existe de menino dentro de ti pasma-se no miradouro de Santa Catarina como se o mágico cortasse a partenére pela primeira vez. Como pode um rio ser tão mar? Como pode aquela ponte de fogo flutuar acima dos navios? Como pode uma esquina, um beco, uma placa com o nome de uma rua, a correnteza de miúdas giras descendo o Chiado e um mitra vendendo droga na praça com a ternura dos diminutivos - "Queres um polenzinho, maninho?" -; como podem todas estas coisas que conheces há tanto tempo carregarem ainda tanta surpresa e prazer?

Esqueces por completo o Rio de Janeiro e enamoras-te de tudo outra vez, tão arrebatado como um poeta na Ilha dos Amores. Devoras folhados de salsinha e bebes leite Ucal. Prolongas-te em pastelarias, ouvindo a conversa das velhas bem agasalhadas e de cabelo roxo, que discutem os preços da roupa num catálogo e se queixam dos filhos, que raramente telefonam.

Durante alguns dias, o romance é adolescente, passeias com a cidade de mão dada, orgulhoso diante dos turistas como se entrasses no liceu agarrando pela cintura a miúda que todos queriam beijar na boca. Cada fachada pombalina, cada abraço aos amigos, cada chamego dos pais, cada piada lançada aos irmãos, cada pequeno almoço na Bijou do Calhariz, cada bebé que nos sorri, qualquer pedaço de matéria, tudo tem um poder magnético só conhecido em filmes de ficção científica. Ficas desregulado, à flor da pele, de choro fácil e piegas, o teu corpo atraído por essa força magnética, cada vez mais pegado à terra e àqueles que não vias há demasiado tempo.

Os dias passam, sofres a partida por antecipação e, em viagens de carro, sozinho, escutas ainda as vozes dos amigos com quem tens conversado - "Isto aqui é terra queimada", "Metade das pessoas que conheço toma ansiolíticos", "Não sei se me vão renovar o contrato", "Fica no Brasil que ficas muito bem".

Certa manhã, a primeira de céu de chumbo, as miúdas giras estão estremunhadas e rabugentas na Rua Garrett e, com desconforto, somas mendigo atrás de mendigo. Ficas impaciente com coisas tão estúpidas como a quantidade de anúncios de perfume e de programas de futebol na televisão. E mesmo que tenhas prometido que não querias saber de política, economia ou a Casa dos Segredos, o lado negro da força instiga-te, incentivando-te a ser maldizente, a fazer um rol de lamentos, inquinando o teu romance com a mesma insídia de uma Marquesa de Merteuil.

Vais partir antes que a rotina pouse sobre ti como poeira, muito mais enamorado do que desiludido, acreditando que entre a luz e a depressão haverá uma verdade mais lúcida sobre esta cidade, ainda que pouca clarividência se consiga diante daquilo que amamos furiosamente. Nunca poderás ser como os turistas, esperando de Lisboa um namorico sazonal, todo paixão e nenhum compromisso, porque ela se entranhou em ti há muito tempo, nas tardes em que o teu pai te levava a ver matinés do Bud Spencer ao Condes e ao Éden, quando os cartazes gigantes eram pintados à mão e um Pai Natal, envolto em nevoeiro de castanhas assadas, tirava fotografias com os miúdos num trenó do Rossio.

És agora um homem feito e a cidade reverbera como nenhuma outra nas cordas do teu corpo quando sobes as escadas do hospital. Perguntas o quarto e cama a uma enfermeira. Por mais que gostasses de ser menino na matinés do Condes, dás-te conta da passagem do tempo porque as médicas te parecem lolitas e as rugas profundas da tua avó sorriem apesar dos tubinhos no nariz.

Seguras-lhe a mão, ela fala da vista do rio na janela.

Na saída, escolhes as escadas em vez do elevador, como se assim pudesses ficar ali mais um bocadinho. Querias escrever sobre outra cidade, mas sabes que isso é impossível porque a "terrinha" é mais do que uma piada no Rio de Janeiro ou uma amante que se visita nas férias.

Queres ficar. Mas também queres ir.

A terrinha: um quarto de hospital, uma maçã assada por comer no tabuleiro, o oxigénio deslizando pela borracha e, no entanto, a tua mão e a mão dela, o azul do rio e do céu baleado pelo sol, a ponte vermelha e os navios rumando ao outro lado do planeta como tu farás brevemente, muito mais brevemente do que gostarias.

Viagem à Terrinha

Hugo Gonçalves

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