Sou lisboeta, detesto que me chamem “alfacinha”, os meus
avós são de muito longe daqui, dum sítio donde vêm batatas, fruta e
vinho mau; lambo-me todo com bitoques, pastéis-de-nata, caracóis e
castanhas assadas. Tenho o “L” e sei de cor todas as paragens de pelo
menos duas linhas de autocarros, o metro conheço como a palma da mão,
até sei o momento exacto em que a vozinha anuncia a próxima estação.
Sou lisboeta, sei perfeitamente que não há sete colinas coisa
nenhuma, não dou trocos a arrumadores e só deixo gorjeta quando o rei
faz anos, posso comover-me com velhos a pedir e músicos de rua mas nunca
dou esmolas a putos, se se me atacar a caridade cristã ou a humanidade
básica pago-lhes um pão de leite com fiambre e um galão e vão cheios de
sorte os gandins.
Sou lisboeta, gosto muito de ver os eléctricos amarelos a passar mas
detesto apanhá-los pela frente no trânsito e não me lembro da última vez
que entrei num. Passo a rua em qualquer lugar e de qualquer maneira sem
ligar a passadeiras nem luzes nem camiões a vir. Tenho um café
preferido ao pé de casa e outro junto do trabalho, e mais dois de
recurso quando os primeiros estão fechados. Tenho também muito
provavelmente uma maneira específica de beber a bica, que o empregado
habitual já conhece, e acho o copo de água que a acompanha um direito
adquirido.
Sou lisboeta, não tenho sotaque mas digo “oralha” e “ovalha” em vez
de orelha e ovelha; não abro a porta a jeovás e não papo procissões. Vou
muito a concertos, às vezes ao teatro, cada vez menos ao cinema e a
pior coisa que me fizeram foi acabarem com a Feira Popular, os
corruptos. Não gosto de polícias e gozo com a ASAE mas só odeio
intensamente os chulos da EMEL. Vou ao hipermercado, ao supermercado e
ao comércio local, sei o nome da padeira e o do velhote da fruta, todos
os outros têm alcunhas gozonas só cá de casa.
Sou lisboeta, não conheço os meus vizinhos nem quero, nada me
envenena a existência como uma reunião de condomínio e à mínima coisa
ameaço com processos de tribunal que nunca se concretizam. Mas vivo numa
aldeia de 2 quarteirões a que sinto o pulso cada vez que meto a cabeça
fora da janela. Tenho uma praia específica na Caparica e adoro ir a
Sintra apesar da IC19. Reconheço chungaria a 500 metros de distância,
sei onde comprar haxixe decente, a que bomba de gasolina ir buscar
tabaco e sacos de gelo às três da manhã mas ainda não aprendi a andar de
escadas rolantes como um cidadão civilizado.
Sou lisboeta, adoro mandar turistas na direcção errada e nada me mete
mais medo do que chuvas súbitas e intensas e greves dos transportes.
Adoro cruzar-me com as pífias celebridades nacionais mas finjo-me sempre
plácido e cosmopolita. Ouço música alto, cuspo no chão, atiro beatas
pela janela, não apanho as cagadelas do canito e aproveito os sinais
vermelhos para limpar a sala.
Sou lisboeta, vou mais ao Colombo do que admito, falo dos suburbanos
com condescendência, odeio o Pinto da Costa, toda a água do meu corpo
veio do Tejo, sei que a maior festa deste país é o Santo António, às vezes vou ouvir fado,
já viajei mas poucas vezes vi algo mais bonito que um dia a nascer de
São Pedro de Alcântara, que o sol da tarde a bater no rio ali entre
Belém e a ponte.
Tiago Matos Silva in Público P3
11.03.2014
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