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3.15.2012

Boys will be Boys

Meio século depois de ter defendido o penalti falhado por José no primeiro dia de aulas, João estava outra vez diante do colega de escola, num aeroporto internacional, na mesma sala de embarque.

Não se viam há anos, mas sentiram, ao cruzar o olhar, o mesmo eriçar dos cabelos, o dedo no gatilho da testosterona, os dentes arreganhados, tudo aquilo que tomara conta dos seus corpos de rapazes, no campo pelado da escola, após João ter dado uma palmada na bola, que subiu, bateu na trave e ficou a saltitar perto da linha de golo sem entrar, e de José ter investido sobre o guarda-redes, cuspindo palavras e gafanhotos:


“Não vale, não vale, tu atiraste-te antes de eu chutar a bola.”


O jogo estava prestes a terminar porque, em segundos, iria soar a campainha para se iniciarem as aulas da tarde. A equipa de João liderava por 9-8, e aquela grande penalidade seria a hipótese de um empate, que seria resolvido numa sessão de cinco penaltis para cada equipa, durante o mini recreio da tarde

José não parava de fazer a mesma acusação: “Não vale, não vale, tu atiraste-te antes de eu chutar a bola.”

Mas não havia repetições e as regras, se as houvesse, foram engolidas pela euforia do falhanço, a equipa de João ganhava o primeiro encontro entre alunos que se conheciam nesse dia, impunha respeito, colocava-se adiante na luta pelo domínio da matilha.

Porque ninguém o ouvia e alguns colegas de equipa já começavam a olhá-lo como culpado pela derrota, José puxou João pelos cabelos e começou a esmurrá-lo, parando apenas quando o professor de Educação Física o agarrou pelo cachaço, tal e qual um pastor alemão abocanhando um gato, e o segurou com dedos firmes que lhe deixaram nódoas negras nos braços.

José seria punido, suspenso, levaria uma coça do pai. Mas, para o resto da vida, todos aqueles miúdos se lembrariam do seu poder, da forma como triunfou, entre poeira, suor e cuspo, perante um adversário que nem conseguiu lançar um murro. O jogo de futebol, a defesa do penalti, seriam notas de rodapé numa história maior – aquela em que José partiu a boca a João numa arena esgotada.

Tinha passado meio século e ali estavam eles, fingindo mandar mensagens escritas ou fabricando um interesse nas notícias financeiras que passam num plasma. O voo estava atrasado. Mesmo que não quisessem, acabavam a olhar um para o outro, disfarçando logo de seguida. Não se viam há mais de uma década, talvez desde o final da adolescência, mas o tempo não tinha qualquer efeito apaziguador naqueles homens. Durante anos, após o incidente, se por acaso estavam no mesmo grupo de amigos ou se encontravam numa festa de aniversário, se por acaso trocavam cromos do Mundial ou olhavam para as miúdas na matiné de uma discoteca, José sentia a jactância dos vencedores com título vitalício e João, embora disfarçasse, sentia um fervor nas orelhas e o estômago recuava para mais perto das costelas.


Não interessava nada o que acontecera entre a última vez que se tinham visto e aquele encontro no aeroporto. Não importava quem era agora mais rico, famoso, aquele que tinha os filhos mais bonitos e a saúde mais intacta. Essas disputas seriam coisas de criança se comparadas com a rivalidade que nasceu no momento do penalti.

O voo tinha atrasado muito. José levantou-se para passear pelo aeroporto. João tinha ido à casa de banho.

Encontraram-se na loja de uma marca de desporto. Não precisaram de dizer nada. João abriu os braços e apontou para a sua esquerda e a sua direita, explicando aquilo que é praxe nestas coisas do futebol jogado na rua: a baliza vai dali até ali.


José pegou numa bola e contou nove passos a partir da linha da baliza. Respirou fundo, imitou a pose de algum jogador que idolatrou na infância, e meteu a bola lá no cantinho onde nem os gatos acrobatas chegam.

José celebrou como não pôde celebrar há vinte e cinco anos. Mas não teve muito tempo para festejos. João deu-lhe um soco no nariz, fazendo-o cair sobre um expositor com ténis de mulher.

O voo era longo e tanto José como João não precisaram de comprimidos para dormir – cerraram pálpebras e apagaram o sistema central como se após uma tarde de domingo a esfolar joelhos e a cansar coxas na peladinha de rua.

Chegados à cidade onde viviam, José cancelou a terapia e foi correr junto do rio. João comeu a mulher – após um ano sem lhe tocar.

Nessa noite, José e João tiveram mais fome que uma praga de gafanhotos. Teriam participado em orgias imperiais, conquistado cidades com muralhas, decidido a final do campeonato do mundo no último segundo da partida.


José pensou: “Que grande golo.”


João pensou: “Parti-lhe o focinho.”


Há muitos anos que não desfrutavam, com tamanho entusiasmo, de coisas tão simples.

Hugo Gonçalves

1.04.2012

11.23.2011

Molecada da peladinha

Se me perguntam: “Qual é seu time?” Respondo: “Benfica.” Se me perguntam: “Qual é o seu time no Brasil?” Respondo: “Vasco da Gama.” Mas há uma grande diferença. Tal como não escolhi apaixonar-me por Sónia na primeira classe, também não decidi que seria do Benfica. Não me lembro do momento em que passei a ser benfiquista. Sou, fui e serei.

Ninguém aqui me pergunta porque sou do Benfica – quem gosta de bola sabe que essa questão não tem uma resposta objectiva, que a escolha do primeiro clube do coração, bem como aquilo que nos faz ser mais trogloditas, drama kings ou uma pilha de nervos no tempo extra do jogo, não pode ser apurado com precisão histórica e distância científica. No entanto, quando respondo “Vasco da Gama” – eles sabem que foi uma escolha –, as sobrancelhas levantam-se, os flamenguistas indignam-se, os vascaínos abraçam-me, os tricolores dizem que sou cliché – o Vasco é o clube dos portugueses, tem no emblema a cruz de Cristo em tempos propagandeada pelas caravelas lusitanas, os primeiros acordes do hino são os mesmos da “Portuguesa”.

É verdade, na busca racional que fiz para escolher um clube no Brasil, apoiar uma instituição fundada por portugueses parecia fazer algum sentido. Além disso, o Vasco foi o primeiro clube com negros no plantel, quando o Fluminense pintava os seus jogadores negros com maquilhagem branca, uma patética tentativa de burla, que levou o clube a ganhar o cognome de “Pó de arroz.”


Um dos meus músicos favoritos, Paulinho da Viola, é vascaíno. Um dos meus escritores brasileiros preferidos, Rubem Fonseca, e uma das suas personagens, Mandrake, mulherengo, advogado criminalista e Lone Ranger da Zona Sul, são vascaínos.

Mas mais que tudo, foi um amigo, antigo emigra portuga no Brasil, com quem estive no Rio em Dezembro passado, que me falou do Vasco da Gama com tanto entusiasmo e boas memórias, que me pareceu evidente que me tornaria vascaíno. Sei que talvez tenha havido também um impulso infantil na escolha de clube feita pelo meu amigo quando chegou ao Rio (ele chama-se Vasco; mas entende-se e perdoa-se, na pós-adolescência admito que usei um perfume Hugo Boss porque me chamo Hugo). Mas o que é o futebol se não a recuperação semanal da infância, como escreveu o madridista Javier Marías?

Não há nada de mal nesse impulso infantil, isso foi e será sempre uma parte das nossas conversas em botecos, em varandas com vista para a Xácara do Céu, nas sessões de parvoíce, na camaradagem, na amizade e na compreensão. Com o meu amigo, fui várias vezes ao estádio da Luz. Espero agora o dia em que entremos em São Januário para ver o Trem Bala da Colina, aka, Vasco da Gama. Sei que jamais agitarei a alma ou cansarei as cordas vocais, como aconteceu com o golo de Vata, o penálti de Veloso ou o 6-3 em Alvalade. Mas o meu coração, tal como o coração do meu amigo Vasco, é suficientemente grande para albergar a cruz de malta.


"A gente não faz amigos, reconhece-os"
Vinicius de Moraes

Hugo Gonçalves

11.08.2011

O Filho mais Velho

É UMA ESPÉCIE de tubo de ensaio. Mas um tubo de ensaio especial, com a resistência de um carro de combate, sempre pronto para uma nova experiência. Diariamente e desde o dia em que nasce. Aliás, ele próprio é uma experiência. Única e irredutível.

Em tudo, o filho mais velho é a primeira vez. Ele é a primeira tosse, a primeira papa, a primeira birra, o primeiro dia de escola, a primeira história, a primeira mentira, a primeira saída à noite, a primeira adolescência, o primeiro castigo, etc. A primeira vez que os pais vêem tal coisa. E ficam pasmados. Depois experimentam coisas, a ver se resulta. Mas erram, vezes sem conta - sempre sem querer, claro.
Mas é para isso que o filho mais velho cá está: para dar o peito às balas e se apresentar aos pais como uma espécie de GOE dos filhos. É ele quem vai à frente, a abrir caminho, a desbravar a mata parental da inexperiência e ignorância. Sem medo. Mantendo-se estoicamente de pé, qual Mogli no meio dos lobos, sem vacilar, sem questionar. Inseguro? Sim, mas de pé. Orgulhosamente. E só.
É por isso que defendo que qualquer filho mais velho devia ser pago. E a peso de ouro. Devia ter mesmo direito a uma espécie de rendimento familiar de inserção, por uma questão de justiça social, mais um seguro de saúde pelos possíveis traumas sofridos no teatro familiar e até uma pensão vitalícia paga pelos irmãos, que foram poupados a idas inúteis ao hospital por causa da famosa tosse de cão que só ao segundo filho consegue ser identificada pelos pais.
Mimado? Não, é apenas o meu filho mais velho. Coitadinho.


Inês Teutónio Pereira

9.07.2011




8.12.2011