11.26.2010

Comer, odiar, amar

O homem na outra mesa mastiga um panado como quem aspira o cuspo por um tubo no dentista. O barulho húmido da carne de porco roça nas gengivas. Penso: um porco a comer um porco. Mais tarde bebe um café coberto por espuma de leite. O seu bigode assemelha-se a natas pegajosas a boiar na caneca. No final palita os dentes, uma actividade que deveria ser tão solitária como espremer pontos negros. Noutro tempo, noutro lugar, ela tinha olhos de praia e a primeira vez que nos sentámos fazia calor. De vez em quando deixava a colher descansar sobre a língua, a boca fechada, o gelado a derreter no fogo da saliva. Era tão doce e suave e necessária como um cone de bolacha com morango e limão. Comer junto de outras pessoas pode ser incómodo ou reconfortante, asqueroso ou lascivo, mau para os nervos ou bom para o caminho da paz. Se um dos meus irmãos se punha a molhar o pão com manteiga no café com leite eu odiava-o, sugeria que o dessem ao Homem do Saco. Muitos anos mais tarde, se a filha dela, que também tinha olhos de praia, se punha a comer bolo de chocolate como quem esfrega protector solar na cara, eu tinha um ataque de riso e queria apertá-la contra mim. Diz o senso comum e os manuais de auto-ajuda que só odiamos ou amamos aquilo que realmente nos importa. Comer não é apenas abastecer o corpo. E o estômago, acredite, pode ser muito mais sensível do que o coração. Felizmente, há sempre a esperança de que para cada comedor sonoro de suínos panados haja uma miúda de cabelo amarelo com uma máscara de chocolate.

Hugo Gonçalves in "jornal i"

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