Esta manhã acordaste e não havia sol e a miúda gira do bar de sucos estava de folga e pegaste nos jornais como quem tenta desarmar o tédio da espera de alguma coisa que nunca chega. Hoje ensinaste uma palavra a uma escritora brasileira de cabelos selvagens e cérebro tão afiado como as facas de um mestre de sushi. Disseste: "Rezingão", esperando que ela, por ser escritora e conhecedora dos maneirismos anímicos dos bichos humanos, entendesse que, pela primeira vez desde que chegaste ao Rio de Janeiro, foi o estertor da melancolia e não o batuque do êxtase que tomou conta das tuas manhãs. No entanto, apesar do intercâmbio cultural entre escrevinhadores da mesma língua, hoje não foste nem bom nem generoso, porque desejaste o atropelamento da velha que empatou a fila de supermercado e levantaste a voz para aqueles que te querem bem e tens de concordar com a pessoa que te disse: "A escrita é a tua namoradinha." Hoje estarias pronto para sair na porrada ou para lançar o computador contra uma parede ou até para continuar a fugir, de cidade em cidade, esperando que alguém te apanhe e te diga: "Fica quieto, rapaz". Hoje vais continuar a escrever (a tua namoradinha, a tua namoradinha, a tua namoradinha) com o embalo do ventilador no tecto e sabendo que há muito mais coisas além destas teclas e deste ecrã e que por isso tens de levantar-te, sair para a rua e perceber que por vezes é preciso aceitar que é o fado - e não apenas a novidade do samba ou dos dias tropicais onde se mistura o efémero e o denso - que serve de orquestra para o teu coração.
Hugo Gonçalves in "Jornal i"
12.23.2010
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