Depois de uma temporada no Rio de Janeiro, distraído das notícias portuguesas, regresso numa dessas manhãs que colam a maresia prateada na silhueta dos casacos, na ondulação dos estendais, na pele cansada dos edifícios. Procuro aproveitar o estado de vigília, a sensação de que cruzo uma cidade que só vi em filmes embora possa dizer ao taxista, rua por rua, qual o caminho para casa. Faz frio neste apartamento onde as janelas embaciam com o aquecedor e não há uma ventoinha no tecto nem areia nos calcanhares espalhando-se pelos lençóis enrugados de sacanagem. Não acendo a televisão, não compro jornais. Mas aproveito o meu estado mutante Rio-Lisboa e olho a cidade como um estrangeiro. Na praça são os pretos que mais riem. Putos e pitas nas suas roupinhas de "Ídolos" descem o Chiado com tesão de fama quando percebem que há uma equipa de reportagem a enlatar vox populi. E no café com mobília descasada passa jazz, fuma-se como numa tertúlia. Três adolescentes olham para um computador. Ela diz: "Pára de estar no Facebook, isso é superficial. Ele responde: "Estou na vida das pessoas, a ----- vai para Londres". O terceiro elemento diz: "Já leste o ''1984''? Eu depois mando-te o link." No aconchego burguesinho do latte macchiatto e laptop, nas fotografias tiradas pela menina do Erasmus, na ausência do ruído televisivo e dos obituários do país nos jornais, na existência plácida e tão cool dos meus companheiros de café, Lisboa é, cariocamente falando, muito legau. Um único problema: amanhã, com os jornais abertos, deixarei de ser turista.
Hugo Gonçalves in "jornal i"
1.19.2011
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