Já não és a capital do império nem a cidade principal dessa ditadura de bufos quando as esquinas eram muito mais vazias e obedientes. Mas ainda tens coisas que parecem antigas, coisas que não se despegam de ti apesar da idade e da fadiga: as manhãs de (quase) calor, no fim do Inverno, quando o céu parece mar e a luz atravessa os corpos, os edifícios, os aviões que sobrevoam viadutos; o rumor das vozes nas casas com portas pequenas em ruas tão estreitas que nos julgamos no interior de um navio; a senhora da mercearia, o senhor do talho, a maluca dos cães e a Dona Odete, que vai ao pão de bata com a fotografia do neto num fio ao pescoço e que fica a olhar para a televisão enquanto espera por um pão saloio e cinco carcaças; os bancos dos jardins onde agora poetas amateurs escrevem nos seus cadernos pretos e os adolescentes se beijam na boca depois do liceu; a surpresa de, a qualquer momento, sem nos darmos conta, termos o rio a aparecer no fim da rua, seja na Pena, seja em Santa Catarina ou em Alfama; e fados na rádio, canários na varanda, buganvílias num canteiro, palmeiras em lugares estranhos. Já não és a cidade beata nem te vestes como uma viúva. Os estrangeiros gostam de ti, cobiçam-te, mudam-se para cá, falam inglês no skype na loja de internet do iraquiano na Calçada do Garcia. Há muito mais gente a gostar de ti e talvez te sintas agora menos abandonada. A verdade é que precisas de atenção, estiveste debaixo de água demasiado tempo. E desculpa se demorei anos para te dizer aquilo que agora é uma certeza: és tão bonita que aqui podia ser a minha casa.
Hugo Gonçalves in "Jornal i"
2.07.2011
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