Escrevo-te uma e outra vez e continuarei a fazê-lo. Quero que sintas o afecto das palavras, dou-te aquilo que tenho de mais valioso, o meu melhor recurso para dizer que gosto de ti e que precisas de alguém que te faça a cama de lavado, que descasque a fruta, que tire as malas das tuas mãos quando chegares de viagem. Gostava que percebesses o teu valor - apesar do cansaço e dos ossos perros da maresia, apesar do medo que te impediu de ser outra coisa. Têm-me falado de ti. Gente que vive fora e que ficou pendurada no teu encanto. Eles, como eu, sabem que és um génio desadaptado, uma musa decadente, que tens as meias de renda com buracos, mas que resplandeces nalgum miradouro. Os jornais estrangeiros elogiam-te, gente de todo o mundo vem cá só para te conhecer, e os afortunados descobrem em ti um lugar onde tirar o chapéu. Escrevo-te porque me preocupam as conversas sobre o que será de ti. Dizem que darás um passo atrás, que não resistirás a esta recessão, que serás outra vez como as nódoas de poluição nas fachadas dos edifícios mais antigos. Não acredito. Já passaste por coisas piores - terramotos na alma e déspotas com sotaque de padre. Nunca estiveste tão bonita como agora. És morena e loira e índia e falas línguas e fazes compras no Martim Moniz e vês futebol num café e gostas quando os violinos do São Carlos tocam naquele largo com árvores. Não tenhas medo da frugalidade dos dias por vir. Tudo o que tens de mais importante está na cabeça e no coração. Não se pode subtrair nem taxar. É nosso. E vale muito mais do que aquilo que julgas.
Hugo Gonçalves in "Jornal i"
4.19.2011
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