Fábio não era mau miúdo. O pai estava pouco em casa, a acumular empregos, biscates e boletins do totoloto não premiados. A mãe tinha uma doença de ossos, faltavam-lhe mãos para agarrar os talheres, para limpar uma ramela nos olhos do filho. Fábio terminou o nono ano após duas tentativas e o trabalho no matadouro deixava-lhe o cheiro do sangue entranhado nas unhas e nos pêlos do nariz. Fábio não era rapaz de torturar animais domésticos ou de apalpar miúdas, mas convivia com os grunhos da claque, malta que se adaptaria bem ao período medieval da história, crânios obtusos, a fúria cega dos mercenários que obedecem à propaganda, à boçalidade com direito a bandeiras, cânticos e arremesso de calhaus. Nesse dia havia jogo e o líder da claque - perito em cabeçadas, armas ilegais e casas de alterne - pediu-lhe que integrasse o grupo que atacaria a claque rival. Fábio vestiu a camisola do clube, beijou as mãos deformadas da mãe, olhou para o cadeirão vazio do pai. Pôs-se a caminho. Chegado o momento do confronto, pôs um cachecol em redor da cara. Mas não sentia a mesma raiva dos colegas. Não queria magoar ninguém. Não era capaz. O líder da claque deu-lhe ordens. Fábio olhou para uma rapariga que passava por ali, com uma camisola do adversário, e quis salvá-la. Estava disposto a servir de escudo. Começou a correr e ela recebeu-o com um soco no nariz. Não era uma miúda. Era um vândalo guedelhudo que lhe pontapeou as costelas. Fábio passou semanas no hospital. Quando teve alta despediu-se do matadouro - aquele lugar era demasiado parecido com a claque.
Hugo Gonçalves in "Jornal i"
4.05.2011
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