Quando eu era pequenino detestava futebol. Via o meu pai em frente ao
televisor a preto e branco na casa açoriana, muito atento àqueles
indivíduos de calções e não percebia nem fazia o mínimo esforço pra
perceber.
Depois, no fim da 1ª classe, veio uma conversa
assustadora… Quando um coleguinha desatou a perguntar a todos: qual é o
teu clube? Pânico. Choque. E agora? Nem sabia os nomes deles quanto
mais os jogadores ou a cor dos equipamentos. Cheio de medo, porque mesmo
com apenas 6,7 anos, o que já mais queremos na vida é sentirmo-nos
parte do grupo, não ser ostracizados, deixei-me ficar para o fim. E só
ouvia: “Benfica, Porto, Sporting, Benfica Porto Sporting, Benfica Porto
Sporting”; um mantra bizarro, poderia ter pensado, se já tivesse
conhecimento suficiente para saber o que é um ‘mantra’… ou até o que
significava ‘bizarro’.
Um jogo de palavras, contudo, ecoou no meu
cérebro infantil: Benfica. Bem Fica. Fica Bem. Sim, respondi quando já
só faltava eu, escondido no meu canto: “Sou do Benfica”. Parecendo firme
mas de facto aterrorizado, claro, com a presunção de que essa pergunta
traria outras, de resposta absolutamente enigmática para mim, como: e
quem é o teu jogador favorito? Gostaste do último jogo? Quem é que vai
marcar no próximo?... Felizmente não vieram mais perguntas e, aliviado,
corri para casa e – lembro-me como se fosse hoje – disparei: ‘Pai… o que
é o Benfica?’. Ele então, com a idade que hoje tenho, arregalou os
olhos - deve ter-se irradiado de alegria por perceber que ainda havia
esperança do seu filhote, afinal, se fazer um homem - e respondeu: ‘O
Benfica?... É o Eusébio’!
E ouvi o relato de campeonatos e taças e
conquistas e golos assombrosos, impossíveis. E pesquisei. E li sobre o
menino moçambicano que veio da pobreza para o topo do mundo quando não
havia YouTube nem empresários nem contratos publicitários, nem sequer
televisão para toda a gente e a toda a hora. E, sem nunca o ter visto
jogar, anos mais tarde devo ter assistido repetidamente a metade dos
quase 800 golos que marcou – obrigado, internet. E perante o Brasil, a
Inglaterra, a Coreia, a Rússia, frente aos maiores rivais internos e os
monstros internacionais. A alegria, o mito, a lenda. Nasceu aí a minha
paixão irracional pela bola, pelo encarnado, pela bandeira.
Bom,
muito tempo passou e uma noite, saí tarde e cheio de larica do jornal
diário onde trabalhava, na zona de 7 Rios. Entrei num restaurante que
servia até à uma da manhã e que ainda estava cheio. Só havia um lugar ao
balcão, ao lado dele. Bebia tranquilamente um whisky enquanto assistia a
um jogo qualquer do campeonato brasileiro transmitido em diferido nos
plasmas sobre o bar. Juventude de Caxias/Curitiba do Iparaguaçu ou seja
lá o que fosse. Hesitei, dei meia volta, corei como uma adolescente que
dá de caras com o Brad Pitt, e lá sentei o meu apertadíssimo rabiosque
ao lado de Eusébio. Comi um prego que me deve ter sabido a carne de rato
porque era assim que me sentia: um ser insignificante ao lado dum
semideus. A certa altura, um rapazinho lá no jogo brasileiro acabou com o
marasmo da partida e desatou a correr e a driblar. Fintou meia equipa
adversária até ser ceifado por um defesa que mais parecia um bulldozer a
aniquilar a Amazónia. Arrancou o puto pela raiz. Uma coisa cruel,
assassina. Na repetição ficou ainda mais evidente a violência daquela
entrada. E a única coisa que ouvi da boca dele foi: “Ah, não é falta!”.
Ri-me por dentro à gargalhada, corei por fora como a chama imensa, e só
pensei que o jogador das 7 operações ao joelho, das mil infiltrações,
não podia ser um simples homem, era mesmo um super-herói. Os padrões
humanos não eram critério para ele.
Não fui capaz de abrir a boca e
arrependo-me até hoje de não lhe ter falado. Neste início de ano, vejo
isso agora como uma lição: se é para nos arrependermos, então que seja
daquilo que fizemos e não do que deixámos por fazer.
Por essas e
por outras, o dia de hoje custa tanto, e custa porque a paixão é
irracional mas o quotidiano é guiado pela razão. E o raciocínio que
todos fazemos resume-se nesta pergunta: como lidar com a morte de alguém
maior do que a vida? Não sei, claro que não sei. Mas tenho uma ideia,
pelo menos, em relação a um futuro possível. Se um dia um filho meu
chegar a casa e disparar uma pergunta tão parecida com aquela que fiz há
30 anos:
‘Pai… o que é o Eusébio?’.
Sei que a minha resposta
será: ‘O Eusébio?... É o Benfica! E o Sporting. O Porto. Todos os
clubes, todas as cores. É Portugal. É o futebol. É o desporto-rei. É o
Rei’. Assim mesmo, ‘é’ e não ‘era’, ‘é’ e não ‘foi’. Presente e não
pretérito perfeito embora perfeito seja na sua lenda, para sempre.
Obrigado, Pantera Negra, Obrigado King, Obrigado Eusébio.
Luís Filipe Borges
1.08.2014
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